Nestes campos invadidos pelos burraldos e seus diplomas de ceifadeiros, taí um Carvalho que vale realmente a pena cultivar.
Mas, como já bem adverti(ram): eu sei mesmo é pôrranenhuma desses campos gerais.
Sou só um lavrador de fixações, alienado de tamborete, brandindo tonlonlons do fundo do meu quartinho.
Mesmo assim, embora-apenas-muito-eventualmente, passeando entre bons campos de carvalho, até mesmo eu sou capaz de colher alguns frutos.
Eis uma safra.
***
“o que é é, e basta”
“os cachorros da véspera”
“para espalhá-lo na ionosfera como manda a higiene.”
“nem me desfiz de Deus para cair nas mãos desses pândegos”
“mas só eu sei do meu vazio e isto me dá uma vantagem de
pelo menos quatro séculos sobre qualquer tipo de tortura deles: mesmo esta.”
“apesar de toda a culpa que tenho e sei que tenho, como
todos têm a sua a qualquer hora do dia ou da noite!”
“(O sistema solar: mas que bela teoria! Quero vê-lo é
funcionando!)”
“o que pensem, o que eu pense, já não interessa: só importa
o testemunho.”
“mais preocupado em conjugar os verbos do que em descobrir
minha própria voz, sobretudo calado.”
“mais preocupados com os pronomes oblíquos do que com a
verdade”
“deixo as contradições para os que não tenham nada mais
sério em que pensar”
“o que pode pensar um lógico através dos seus poros é que eu
não sei.”
“todo o peso da estratosfera sobre os ombros”
“é possível até que me julguem um cidadão respeitável, o que
de si já me tiraria todo e qualquer respeito.”
“têm que ter no mínimo a força do raio ou a do mistério –
senão não valeria a pena ser homem”
“brandindo a sua espada como qualquer feiticeiro de
subúrbio”
“a chuva é porque é a chuva, não sou planta nem defunto para
ter que suportá-la ano após ano, dia após dia e a mesma sempre: muito menos um
dilúvio destes”
“ali mora o bispo com todos os seus intestinos”
“ele é mestre em issos e aquilos”
“o emblema do município entre as pernas”
“me vingo espiando as estrelas”
“alvará da prefeitura ou do universo”
“o que sou mesmo é um homem e voltarei a ser: questão apenas
de tempo e confiança”
“túnica inconsútil”
“a importância que tem a morte de um avô, é o que eu sempre
me digo!”
“com esse copo na mão eu seria capaz de recordar até o
futuro”
“nos esgotos também corre a alma de um rio”
“essa gente grita para não se ouvir, se se calassem
acabariam por perder a voz, acabariam uivando como eu”
“cevar a terra antes de esquartejá-la e mandá-la às nuvens”
“terei que antes fazer um curso de blablablá, como aprendi a
fazer a barba todo dia desfazendo-a”
“decidi ser imortal até que sobrevenha a morte”
“ver Nápoles depois morrer”
“um outro mundo de repente, sem geografia e sem sustos”
“peidando na hora exata”
“Beethoven e suas jubas protegendo-me de olhares indiscretos”
“coronel de merda, de merdíssima!”
“mandei também a lua à merda”
“a última chuva dentro do bolso”
“o que vale a pena ser dito é incomunicável”
“continuam a fazer poemas, e novos poemas, alguns até sem
vírgulas e sem maiúsculas, xingando Deus e sonhando com a academia”
“sou mesmo o último dos canalhas”
“um homem deveria morrer sempre nu ou vestido de almirante”
“à noite um pouco ou muito de Bach para manter acesa a
chama”
“o padre ao lado me olhando com repugnância, este cheiro de
puta não há latim que aguente”
“como uma chuva imóvel”
“transeuntes caminhando nos meus olhos e nas minhas veias”
“tranquilos e ferozes como deuses, no seu anonimato e na sua
covardia”
“podem me fazer girar como um pião, mas é em torno de mim
que eu giro, não em torno deles, este é o meu sistema solar e desafio-os a
arrancar-me o sol como podem fazer com o seu, eles que se julgam os donos de
tudo e são os donos de nada, e se apavoram com o Nada de que vieram e a que
estão sempre voltando.”
“espero pelo pior, mas já a esta altura o pior será apenas mais um motivo para eu lhes lançar meu testemunho no rosto, o meu testemunho e o meu cuspo, e não apenas em meu nome mas no de todos, desde que o homem foi inventado e com ele o câncer e a bomba atômica, a cadeira elétrica ou o amor não-correspondido.”
“esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo”
***
(Campos de Carvalho - A chuva imóvel)