terça-feira, 4 de abril de 2017

Porque é a chuva imóvel que rega o bom Carvalho

Nestes campos invadidos pelos burraldos e seus diplomas de ceifadeiros, taí um Carvalho que vale realmente a pena cultivar. 

Mas, como já bem adverti(ram): eu sei mesmo é pôrranenhuma desses campos gerais.

Sou só um lavrador de fixações, alienado de tamborete, brandindo tonlonlons do fundo do meu quartinho.

Mesmo assim, embora-apenas-muito-eventualmente, passeando entre bons campos de carvalho, até mesmo eu sou capaz de colher alguns frutos.

Eis uma safra.

***

“o que é é, e basta”
 
“os cachorros da véspera”

“para espalhá-lo na ionosfera como manda a higiene.”

“nem me desfiz de Deus para cair nas mãos desses pândegos”

“mas só eu sei do meu vazio e isto me dá uma vantagem de pelo menos quatro séculos sobre qualquer tipo de tortura deles: mesmo esta.”

“apesar de toda a culpa que tenho e sei que tenho, como todos têm a sua a qualquer hora do dia ou da noite!”

“(O sistema solar: mas que bela teoria! Quero vê-lo é funcionando!)”

“o que pensem, o que eu pense, já não interessa: só importa o testemunho.”

“mais preocupado em conjugar os verbos do que em descobrir minha própria voz, sobretudo calado.”

“mais preocupados com os pronomes oblíquos do que com a verdade”

“deixo as contradições para os que não tenham nada mais sério em que pensar”

“o que pode pensar um lógico através dos seus poros é que eu não sei.”

“todo o peso da estratosfera sobre os ombros”

“é possível até que me julguem um cidadão respeitável, o que de si já me tiraria todo e qualquer respeito.”

“têm que ter no mínimo a força do raio ou a do mistério – senão não valeria a pena ser homem”

“brandindo a sua espada como qualquer feiticeiro de subúrbio”

“a chuva é porque é a chuva, não sou planta nem defunto para ter que suportá-la ano após ano, dia após dia e a mesma sempre: muito menos um dilúvio destes”

“ali mora o bispo com todos os seus intestinos”

“ele é mestre em issos e aquilos”

“o emblema do município entre as pernas”

“me vingo espiando as estrelas”



“alvará da prefeitura ou do universo”

“o que sou mesmo é um homem e voltarei a ser: questão apenas de tempo e confiança”

“túnica inconsútil”

“a importância que tem a morte de um avô, é o que eu sempre me digo!”

“com esse copo na mão eu seria capaz de recordar até o futuro”

“nos esgotos também corre a alma de um rio”

“essa gente grita para não se ouvir, se se calassem acabariam por perder a voz, acabariam uivando como eu”

“cevar a terra antes de esquartejá-la e mandá-la às nuvens”

“terei que antes fazer um curso de blablablá, como aprendi a fazer a barba todo dia desfazendo-a”

“decidi ser imortal até que sobrevenha a morte”

“ver Nápoles depois morrer”
 


“um outro mundo de repente, sem geografia e sem sustos”

“peidando na hora exata”

“Beethoven e suas jubas protegendo-me de olhares indiscretos”

“coronel de merda, de merdíssima!”

“mandei também a lua à merda”

“a última chuva dentro do bolso”

“o que vale a pena ser dito é incomunicável”

“continuam a fazer poemas, e novos poemas, alguns até sem vírgulas e sem maiúsculas, xingando Deus e sonhando com a academia”

“sou mesmo o último dos canalhas”

“um homem deveria morrer sempre nu ou vestido de almirante”

“à noite um pouco ou muito de Bach para manter acesa a chama”

“o padre ao lado me olhando com repugnância, este cheiro de puta não há latim que aguente”

“como uma chuva imóvel”

“transeuntes caminhando nos meus olhos e nas minhas veias”

“tranquilos e ferozes como deuses, no seu anonimato e na sua covardia”

“podem me fazer girar como um pião, mas é em torno de mim que eu giro, não em torno deles, este é o meu sistema solar e desafio-os a arrancar-me o sol como podem fazer com o seu, eles que se julgam os donos de tudo e são os donos de nada, e se apavoram com o Nada de que vieram e a que estão sempre voltando.”

“espero pelo pior, mas já a esta altura o pior será apenas mais um motivo para eu lhes lançar meu testemunho no rosto, o meu testemunho e o meu cuspo, e não apenas em meu nome mas no de todos, desde que o homem foi inventado e com ele o câncer e a bomba atômica, a cadeira elétrica ou o amor não-correspondido.”

“esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo”

 
***

 (Campos de Carvalho - A chuva imóvel)

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