segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

sábado, 14 de dezembro de 2024

analgias, tiques e pequenas falhas locomotoras


“E a maldição de começar a envelhecer. No meio da noite, no meio do mundo, luz de vagalume lambendo trevas.”

[...]

“...talvez a falta de um braço protetor sobre os ombros ou em torno da cintura, jardins e crepúsculos expõem nossas carências e fragilidades, o corpo produz analgias, tiques, pequenas falhas locomotoras para denunciar sua solidão.”

[...]

“Já inventariei todos os ruídos da casa, todos os silêncios.”

[...]

“Atenção passageiros para o dia, queiram tomar seus lugares. Entrego a cidade, com seus roubos, estupros e assassinatos, aos seus legítimos donos. Sou o guardião da noite, encerro meu turno. Agora posso dormir.”

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Viver é prejudicial à saúde
Jamil Snege

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Inventariante de ruídos.
Inventariante de silêncios.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

ânsia burra nº 542

 

“Ler – é só o que tenho feito, essa ânsia burra de buscar a pedra filosofal, a epifania da linguagem, a revelação da escritura, o verbo ardente escandindo a palavra mágica que desvela o mistério. Se não tivesse me fatigado de Deus, poderia pilotar o barco da minha insônia em bem-aventurança até a margem da manhã seguinte. Se não tivesse me fatigado do amor, dos tédios e silêncios que o pontuam, eu poderia embeber meus sentidos no torpor de outro corpo. Se não tivesse me fatigado da ideia de morte, eu me agarraria com fervor à vida que sobrevive ao pequeno morrer de cada dia. A lucidez é o mais cáustico dos venenos. E não há espírito que resista à lenta deterioração do corpo. Um homem de meia-idade, nu e sozinho no bojo da noite, sem uma contrição ou um orgasmo, recusando a introspecção que só conduz a ruínas, é um feto desidratado exposto na mesa de autópsia do mundo. Precisa se agarrar ao útero mais próximo, pegar carona na vida que passa ao lado, fincar seu bico de molusco faminto na plenitude de sua presa. Minha filha é minha presa, Harry é minha presa, alguns amigos sobre os quais lanço meus tentáculos com um misto de afeto e repugnância, sim, sou o torvo, o torpe, o que maneja unhas infectadas, embaralhando palavras e navalhas, escondendo na manga a lâmina enferrujada, o ferrão, a baba pegajosa do pequeno monstro solitário.”

[...]

“Gostaria que alguém me dissesse por que tenho de ser o limítrofe, o quase, o relativamente, o por pouco. Até há algum tempo atribuí minha falta de brilho aos azares da sorte, à cidade, ao país, ao meio, à indolência, ao ser esquivo e esquizo que sou. Hoje percebo nitidamente que me falta é talento, fervor, febre criadora. Aquela centelha a que chamam gênio, capaz de embaralhar as verdades aceitas e propor o novo aos olhos pasmos da realidade. Eis o que me falta: a capacidade de exprimir isso de maneira original, sem o já feito e o já pronto, o vulgar lugar-comum, a inércia da linguagem que transforma o dito numa dublagem do que deveria ser dito. Ah, merda, se eu pudesse rasgar com as unhas a pele das palavras, romper seu invólucro acústico, liberar o feto coaxante que habita em seu bojo, ouvir suas imprecações de cartilagem e muco – um som que fosse a extrusão de membranas malformadas sobrenaturando o mundo...”

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Viver é prejudicial à saúde
Jamil Snege

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Rasgando com a unha a pele das palavras:


Mortal Loucura - Caetano Veloso e José Miguel Wisnik

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

existo - não sou


 “A vida é muito estranha. Já gastei a minha cota de mulheres, já amei e desamei, fui amado e desamado, mas de repente um arroubo juvenil brota lá dentro e eu me sinto tolo, núbil e apaixonado. Por nenhuma mulher em particular, mas por qualquer mulher – contanto que me olhe com uns olhos redondos de ternura, me fale com uma voz macia, pergunte se dormi bem, se me alimentei, se senti falta dela. Arroubos. Sou um sujeito totalmente à margem do mercado amoroso ou sexual. Uma carreira profissional estagnada, uma aparência que não é das melhores, o desencanto da idade, a indiferença do mundo. Cultivo hábitos antissociais e saberes inúteis. Sou capaz de discorrer sobre um monte de bobagens, identifico árvores, pássaros, minérios. Cozinho razoavelmente. Consigo discutir durante cinco minutos com especialistas de qualquer área. No minuto seguinte constato que não me especializei em nenhuma delas. Li os clássicos, ouvi os clássicos, cito em mau latim, nada sei de grego. De tanto ouvir sobre viagens internacionais, viajei o mundo todo sem nunca ter ido a parte alguma. E as vezes que fui, acabei não indo: não encontrei o túmulo do herói, o café dos impressionistas, a casa onde morreu Balzac, a nascente do Nilo. Peguei o trem que não devia, o avião antecipado, o hotel do lado oposto, fui ao bar que já havia fechado. A mulher que eu amaria já havia partido, o irmão prometido morreu na guerra da Criméia, o amigo desejado ficou retido em Istambul, um furacão, uma avalanche, uma súbita queda de temperatura, uma mudança do fuso horário, um porre, um mal-estar passageiro, uma diferença de caixa, a falta de um terno novo, o medo de se arriscar, não ouvir um conselho, ouvir um conselho, descartar um par de noves, insistir num casamento, alegar indisposição, simular um orgasmo – e aqui vou eu nesta estrada às três da tarde, como poderia estar numa estrada de Sintra ou do Arizona, eu e minha circunstância imutável: existo – não sou.”

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Viver é prejudicial à saúde
Jamil Snege

(publicado em 1998 pelo autor e republicado em 2020 pela Arte & Letra)

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Arroubos.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Música Salva! (49) - We are what we're waiting for

 


Kim Deal - Nobody Loves You More

"Perfect hosts and room ghosts shout
I don't care what they say
They can fight it out
I mean to tell you
Nobody loves you more"

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Kim Deal - Big Ben Beat

"We stare at the stupid stars
Our love is hard
We are what we're waiting for"

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Kim Deal
Nobody Loves You More
(2024)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

meu truta, é o seguinte...

 "...disse em uma voz cheia de areia e intenção..."

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"Falando de evacuações, sua missiva, apesar de completa em outros assuntos, passou por alto nesse. É verdade que você fala em processos de micturição rural, mas muito ligeiramente também. Achei isso uma omissão lamentável da parte de quem, como você, não ignora o meu inesgotável fascínio pela defecação em acampamento. Favor mandar detalhes da próxima vez. Tipo de fossa, posição adotada pelo usuário (agachada ou em pé), número de idas por dia, quantidade de vermes produzida, odor, e número de depósitos por hectares deixados por visitantes anteriores."


Pescar truta na América - Richard Brautigan

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"A pequena distância do barraco havia uma privada com a porta violentamente aberta. O interior da privada estava exposto como um rosto humano, e a privada parecia dizer, 'O velhote que me fez cagou aqui 9.745 vezes, hoje está morto, e não quero que ninguém mais toque em mim. Ele era um bom sujeito. Ele me construiu com carinho. Me deixe em paz. Agora eu sou um monumento a um bom cu que se foi. Não há mistério aqui. É por isso que a porta está aberta. Se quer cagar, vá no mato, como os veados.'

- Foda-se - eu disse à privada. - Eu só quero uma carona rio abaixo."

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"...e na parede tinha um rolo de papel higiênico, tão velho que parecia um parente, talvez um primo, da Magna Carta."

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Esse post tem o patrocínio de HELLmann's:
a verdadeira maionese.