quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

existo - não sou


 “A vida é muito estranha. Já gastei a minha cota de mulheres, já amei e desamei, fui amado e desamado, mas de repente um arroubo juvenil brota lá dentro e eu me sinto tolo, núbil e apaixonado. Por nenhuma mulher em particular, mas por qualquer mulher – contanto que me olhe com uns olhos redondos de ternura, me fale com uma voz macia, pergunte se dormi bem, se me alimentei, se senti falta dela. Arroubos. Sou um sujeito totalmente à margem do mercado amoroso ou sexual. Uma carreira profissional estagnada, uma aparência que não é das melhores, o desencanto da idade, a indiferença do mundo. Cultivo hábitos antissociais e saberes inúteis. Sou capaz de discorrer sobre um monte de bobagens, identifico árvores, pássaros, minérios. Cozinho razoavelmente. Consigo discutir durante cinco minutos com especialistas de qualquer área. No minuto seguinte constato que não me especializei em nenhuma delas. Li os clássicos, ouvi os clássicos, cito em mau latim, nada sei de grego. De tanto ouvir sobre viagens internacionais, viajei o mundo todo sem nunca ter ido a parte alguma. E as vezes que fui, acabei não indo: não encontrei o túmulo do herói, o café dos impressionistas, a casa onde morreu Balzac, a nascente do Nilo. Peguei o trem que não devia, o avião antecipado, o hotel do lado oposto, fui ao bar que já havia fechado. A mulher que eu amaria já havia partido, o irmão prometido morreu na guerra da Criméia, o amigo desejado ficou retido em Istambul, um furacão, uma avalanche, uma súbita queda de temperatura, uma mudança do fuso horário, um porre, um mal-estar passageiro, uma diferença de caixa, a falta de um terno novo, o medo de se arriscar, não ouvir um conselho, ouvir um conselho, descartar um par de noves, insistir num casamento, alegar indisposição, simular um orgasmo – e aqui vou eu nesta estrada às três da tarde, como poderia estar numa estrada de Sintra ou do Arizona, eu e minha circunstância imutável: existo – não sou.”

***

Viver é prejudicial à saúde
Jamil Snege

(publicado em 1998 pelo autor e republicado em 2020 pela Arte & Letra)

***

Arroubos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente aqui!