domingo, 7 de dezembro de 2025

Close-Up

 

Close-up
(Abbas Kiarostami, 1990, Irã)

***

"Foi por isso que me refugiei em um livro, que li e reli inúmeras vezes, para curar meu coração."

***


Il giorno della prima di Close Up
(Nanni Moretti, 1996, Itália)

sábado, 20 de setembro de 2025

balancemos, balençamos: hontem e oje


JUL/2022

***

inicialmente, te emprestei o meu,
depois passei a carregar dois lenços,
um em cada bolso.

quando chorava usava o da direita,
quando você chorava, te oferecia o da esquerda.

não por nada não, viu, mas só
com propósitos puramente sanitários,
considerando com cautela o ambiente hospitalar.

às vezes, usava os dois sem perceber,
às vezes, te oferecia ambos
enxugava nas costas da mão
ou deixava pingar solto nas suas omoplatas.

e houve ocasiões em que choramos aleatoriamente
nestes paninhos
misturando muco e lágrima meus e seus
tanto no da direita, quanto no da esquerda e vice-versa,
sem nenhuma cerimônia.

hoje vi que você ainda usava o lenço de anteontem,
mesmo eu sendo tão cuidadoso em renovar o estoque
com peças limpas a cada nova visita
à UTI humanizada.

te perguntei o motivo, mas, sem esperar resposta,
ofereci de pronto um outro novinho
apenas para descobrir que você
poupava no canto da bolsa os dois lencinhos limpos
de hontem e oje.

e pensar que houve uma noite cega e suja nessa cidade em que alguém se virou sem tato de seda ou microfibra e nos disse:
"- quem ainda carrega lenços nesse mundo?"

(oje, SET/2025)

domingo, 14 de setembro de 2025

soa o gongo



JUL/2022

***

de um lado do ringue
oitenta e dois quilos
de bronquite e tártaro
do outro lado do ringue,
o cruzado de esquerda
mais insosso da cidade

soa o gongo do primeiro assalto
e sigo gastando todo o seu
dinheiro em dívidas
de apostas nas
lutas que não são nada bonitas de se ver

minha dívida eterna de córnea e retina

assisto atento ao município
com a habilidade de escotista
nestes campos de bocejo
em que o menos interessante é sorte

e rabisco os cenários,
os movimentos,
os caracteres
nesse meu caderno de vários erros consecutivos,

os mais dissimulados
erros

e quando falta a criatividade
o que assalta é o algoritmo
ou a perspicácia sincera
do daguerreótipo
imparcial

onde há ínfima novidade ou luz,
volta ligeira no quarteirão
relaxa pupilas e
traz alívio de ar fresco ilusório

testemunho na praça central
que, descida do palanque da razão,
a felicidade agora está descalça no pátio
garantindo sua satisfação
a preços módicos

e nos sons e ruídos incidentais da trilha
de rua: os novos e já tão grandiosos artistas

o jazz desconfia, discorda e de tudo duvida
o blues procrastina suas dores
o choro segura o choro, o samba camba,
a bossa, sova

movimento perpétuo em
máquina de madeira, metal, couro, nylon
carne e fôlego

e, investigando, sigo mais um pouco e ainda a pé,
afinal, um cara,
quando é um rústico, um drástico, um dramático, um trágico, um apocalíptico,
ele anda a pé

seja na chuva sovina daqueles sete anos
seja neste rascante, incendiário e sisífico mês de agosto

colecionando azarões perfeitos
- estrutura e formação -
constituição bem trabalhada
de viver beijando a lona
sem jamais se permitir
jogar a toalha

lutas nada bonitas de se ver

então saquemos dos nossos próprios bolsos
e façamos nossas apostas por conta e risco

a cidade não vai esperar
a reunião do conselho da tesouraria

(2019)

***


Shining (2025)
Mac DeMarco

***

Sim, tudo muito bom, tudo muito bem, muito bonito, muito falsetístico, muito equestre, muito puro.

Mas a questão é que o sol já não brilha sobre ninguém, meu ferinha.
Ele chove.
Nos seus próprios termos, ele chove.
E por isso a chuva parou de ligar.

E eu fiz de tudo pra não me importar com nada disso, mas, pego de surpresa assim, num domingo à noite, depois de mais uma bateria de chopps que não deram em nada, confesso que cometi essa gafe de ficar comovido.

***

E "gonna away now" é uma placa de sinalização que devíamos obedecer com mais frequência mesmo, concordo contigo.

sábado, 13 de setembro de 2025

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Intransponível


JUL/2022

***

Pois então não se acostume com a emoção, porque depois viver sem ela será difícil.

sábado, 6 de setembro de 2025

deus na escuridão - MÃE, valter hugo

 

Deus na escuridão
Valter Hugo Mãe

***

“As barrigas das mães não eram para visitas mordedoras. Predadores dentados não se atreveriam a chegar-lhes perto. As mães são mais que ferros e mais que tubarões, mais que crocodilos e mais que dinamites.”

“Quando nasce uma cria, há um planeta com seu nome onde só sua mãe habita.”

“...sumária e toda.”

“...meu irmão não teria atmosfera, seria ainda vulcânico...”

“Tinha muita higiene com Deus.”

“Ia ser tão limpo e sem culpa que haveria de comparar-se ao valor da paz.”

“Amamos mais o que vemos em perigo. Amamos mais quem vemos em perigo.”

“Meu pai via-se para tão longe que só poderia estar feito de distância.”

“Diz-se que a ilha já inventaria suas flores só pela memória, sem semente nem água.”

“A fome é uma certa morte à espera.”

“De todas as vezes que fazia o que era pedido ou esperado, eu era bonito. Não havia melhor coisa para ser.”

“Tinha uma infância aguda. Sofria de infantilidade drástica, máxima.”

“Eram a matemática dos afectos. E eu disse: as mães. Eu disse: minha mãe vai educar este dinheiro, minha senhora.”

“Quando minha mãe puser as mãos neste dinheiro, vai levá-lo onde adube, onde cubra, onde cure, onde faça justiça. Este dinheiro, minha senhora, vai ser inteligente à força de minha mãe. Vai aprender uma lição de vida. Vai ser como um doutor. E eu ficarei feliz.”

“Assim se educa o dinheiro. Que por vezes se esquiva das mãos que o merecem. Esperneia por pudores, vergonhas e demasiadas etiquetas.”

“Pelo amor, sobretudo, que a santidade não dava aos homens da ilha. Só às mulheres.”

“O mar, essa imensa tristeza de água.”

“...tão feita de tempo e saúde...”

“Éramos pessoas puras em nossas incompletudes e derivas.”

“Quando não se acredita com o coração, é importante acreditar com os braços, com os pulmões ou com o estômago. A vida desafia por todo o lado, e a resistência tem de ir buscar sua ciência a qualquer pulsação, qualquer fluxo, qualquer golfada de ar. Até para amar. Maioria do amor é com os braços. Com a força das pernas, com a cabeça obstinada procurando soluções para proteger.”

“Avelharíamos casmurros como todos os velhos. A ficar de aspecto longínquo, todos antigos, como animais de outras épocas que procuram habitar ainda um planeta que foi embora à revelia.”

“O medo sempre pergunta sobre a culpa, porque a coragem constrói a partir da convicção de se merecer, ou não, vencer o obstáculo.”

“A solidão é sempre uma espécie de fim. O fim de um lugar.”

“A partilha de uma maravilha trazia mais maravilha ainda. E eu sentia-me orgulhoso de ter sabido daquilo primeiro. De ter merecido saber daquilo primeiro.”

“Na direção das minhas pessoas sagradas era, por natureza, o meu caminho.”

“...em redor de suas mães perfeitas, porque é o amor que aperfeiçoa.”

“Seria invisível no radar da fome.”

“A mesa estava posta. A sopa pelos pratos a parecer um jardim desfeito com beleza. Podiam ser nenúfares aquelas plantas de flutuar.”

“Comíamos a sopa e nossa mãe recomendava: só parar até ficar limpo o prato, porque a maravilha que se juntou no prato vai juntar-se inteirinha nas vossas barrigas, e as vossas barrigas vão pensar que são o Paraíso. Quando estávamos alimentados, salvos da fome, ela perguntava: onde fica o Paraíso. E nós dizíamos: aqui. Dentro de nós. Umas vezes no peito, outras vezes mais abaixo. Mas invariavelmente dentro de nós.”

“Eu deveria saber amar tanto que aceitasse a ausência. Se eu fosse maduro, se não fosse néscio, como me acusaram, eu deveria amar sem morrer perante a ausência.”

“Pouquinho ensinara que não se prometem a Deus sofrimentos nem sacrifícios porque, como as mães, Ele não nos quer ver sofrer.
Nunca prometas a Deus o teu sofrimento.
Ajuda Seus filhos a reencontrar o caminho de casa.
Devemos prometer cantar-Lhe, alimentar-Lhe os filhos, salvar-Lhe os animais, regar as plantas, semear pela terra toda, proteger os livros. Caminhar em visita. Ele dizia: quero que prometas, Felicíssimo. Eu quero que tu prometas que O ajudas, mas que não te provocarás a dor. Quem se vicia na dor desumaniza-se.”

“E minha maior obrigação será sempre a de aclamar o coração de minha mãe.”

“...o futuro é uma riqueza universal. Vai esperar a todos.”

“Quem eu era, sem ser muito, haveria de estar todo contido no que fazia.”

“Ainda que minha fuga fosse pela eternidade, uma fuga infinita, sem limite e sem aceitar negociação nem concessão, eu preparava-me para o gasto efêmero do corpo. Essa pressa que ele tem em exalar sua alma, entregar-se à terra, esquecer que nos serviu.”

“Que necessidade tem o corpo em começar a apodrecer, em todos os instantes ensaia sua falência. Ainda que nos sirva, é tão facilmente contra nós. Um inimigo que domesticamos pela metade. O corpo é um suicida. Por mais motivada a alma, por mais que o encantemos, ele progride para desistir.”

“Enquanto reeducávamos os pulmões, nos enchíamos um do outro, como se dentro de cada um voltasse a haver um espaço em que o outro entrava, sem ir embora. Sem jamais ir embora.”

“Quem prefere o amor vive no milagre, e o milagre é em toda parte.”

“...irremediavelmente assim, irremediavelmente juntos.”

sábado, 23 de agosto de 2025

MÃEgue


mangue
moisés alves

***

"Há sempre limitados modos
de não perder as estribeiras."

"É incrível esse tempo que nos resta.
Nunca sei o que faço com as sobras."

***

"Quando nos abraçamos
formamos um aparato químico-amoroso"

"A gente tenta manter o céu
sobre nossas cabeças. Nem sempre ganhamos.
Melhor: nem sempre se ganha uma perda."

"Mãe é onde estamos"

"Só há tempo para habitar a vida.
Nosso amor ao presente triunfa."

"Minha mãe exercita-se
em outras relações sintáticas.
A alma é um bem público."

"Ela fica tão leve
sem o peso dos passados"

***

"amor é quando
pequenos enunciados médicos
dizem é grave não estudamos
ainda essas tramas incuráveis
que pena"

"amor é quando a gente vai se devolvendo
sem escândalo à natureza"

"amor é quando você quer ficar
e seu saco de pancadas rasga"

"amor é quando você não quer mas seu corpo dança"

"amor é quando a partir de agora você assume
sua própria maternidade"

"amor é quando do galho um fruto cai"

"amor é quando você é o restauro
a usina a ruína o canteiro de obra"

"amor é quando você volta"

***

"agora que perdemos a localização das ilhas
estamos juntos nesse laço de abandono
de distância
a distância é quando uma mão alcança
a impossível manufatura das paixões"

***

"seres térmicos"

***

"Ataquei mortes estreitas
pondo poemas de grande beleza na zaga."

"Acusamos a vida pelo excesso
de pequenos milagres
não de enigmas. A vida está aí, pessoa,
Solta nas praças como um vira-lata"

***

"revoltas que retornam"

"rasga relações"

"além disso nossa fome
de expansão é bem restrita
a gente não se estica
como felinos, vírus e fascistas"

***

"Estar presente às vezes é tudo
que se pode dar como resposta."

"todo desencontro comove."

***

"da desaparição de um gesto"

***

"queremos ir e voltar
para um lugar irretornável"

***

"ainda lembra das finitas posturas
que um corpo conquista"

"uma verticalidade vital
é um corpo de pé"

***

"magia búfala"

***

"o luxo de ter o que todos têm
dois pulmões neon"

***

"minha memória
parou de tomar conta"

***

"que o vento arraste o pó"

"elas disseram
viva depois morra
basta"

***

"envolto numa solidão crua
ancestral muito digna"

"balançando numa temporalidade
solta de calendários"

"desse calor que sai das coisas
úmido ambulante sem passado"

***

"pensamentos bactericidas"

"a língua no osso
para soldar"

***

"ruínas celebram
nunca conservam"

"diante
de um acontecimento
você sensualiza
e exige referências
concentrado nos prazos
para a abertura de recursos"

***

"que pareço um tumulto"

"Mãe é um gesto atrás do outro,
Não adianta, é herança solta."

"Conhece-se a força de uma coisa
sobretudo através de sua ausência.
Restos são de grande beleza e
servem como vigas dos vários tempos
que nos cercam.
Às vezes abro uma porta e entro numa
estação de carícias que me interessa
violentamente.
A vida pede mais vida,
é a lei."

***

"rastros ocupam espaço
de tal modo
que seu desaparecimento
é inesgotável"

"como se isso domesticasse
esse rio que sangra"

"estamos impregnados
por essa instância impessoal
que não abraça nem desata"

***

"em algum momento atingimos
um ponto onde é necessário reconhecer
onde uma dor finda
a dor também nos abandona"

"a questão é como servir-se de
um resto que fica"

***

"crescer é muito inesperado"

***

"sobre a história mamífera desse país"

***

"quantos homens e mulheres
faltam nascer para que a terra
me dispense"

***

"impossíveis têm que ser respeitados"

***

"o passado anda agora
em nossa frente"

***

"quando um sumiço
finalmente some"

***

"isso que acontece pertence
aos povos dessa terra
nada pessoal
a glória é essa"

***

"desaparecer
é uma ferida"

***

"durar é justo
durar é uma atitude do mundo"

"minha mãe tem muitas línguas
tenho fissura quando ela
para numa que não é
nem lembrança
nem esquecimento"

***

"minha absurda falta de geometria"

***

"arquivo de uma fúria"

***

"Uma invariável
falta de enigma
por todos os lados"

"Minha mãe, como a sua,
se reparte em muitas outras
possibilidades de maternidade."

"Minha mãe alcança
uma frequência de desaparecimento
que me falta habilidade espírito
de aventura força vital câncer."

***

"palavras que cuidam de mim
desde criança são
esquizofrenicamente
de esquerda."

"a esta hora só quem chega é o deserto"

***

"Sei lá, o mais estranho no sofrimento
é que ele não aniquila."

***

"A agulha
desse século não reconhece
um LP de 1980. Esse tempo
não nos reconhece."

"Tudo é questão de soltar mais porção de vida
para aniquilar formas suburbanas de morte."

"O começo de nosso prazer
eu e ela não lembramos. O diagnóstico
acusa que o vício que temos
é esquecer o que somos."

"Amar mamãe é voraz, antibiográfico,
consta na futura perícia de minhas vísceras."

***

"Quando menos se espera
o sólido desaba"

***

"cansaços servem 
apenas para alimentar poemas"

"estou pronto
venha o que vier
mas só um momento"

***

"a vida é uma onda.
a onda viaja. a onda chega numa praia.
a onda volta. aceitamos de soslaio
o que vem o que vai embora."

"eu tenho um nome próprio.
você também.
vamos viver."

domingo, 17 de agosto de 2025

a água é uma MÃEquina do tempo


A água é uma máquina do tempo
Aline Motta

***

"nem todas as mães vingam"

*

"Devo a você a ansiedade da perfeição, não há conserto quando se falta uma peça."

*

"Fazer o que pôde custou-lhe a vida."

*

"Odiava quando chamavam minha mãe de guerreira. Seu corpo não era um campo de batalhas."

*

"Mortos são corpos do mundo que não são mais corpos de ninguém.
Um corpo separado de sua memória não é mais uma pessoa."

*

"Estávamos nadando ou sendo arrastados pelas ondas?"

*

"Se você estiver consciente durante a morte, não sobreviverá."

*

"Tudo o que não tive será dela."

*

"Nós apenas não sentíamos o seu desaparecimento.
Gases formavam fantasmas que tinham o seu nome."

*

"Se eu soubesse teria soprado um par de pulmões no lugar do seu útero."

*

"...respirar o vento da eternidade..."

*

"A filha vira uma ancestral da mãe
memória e veículo
A água é uma máquina do tempo"

domingo, 27 de julho de 2025

lenta e

 
suave
sua avó soa veloz pelo jardim
salga uma lesma
assobia pelo ouvido
cerca e se antecipa
sabe sobre tudo
sobretudo, sábia

***

- A senhora vai temperar umas lesmas?
- É, vou levar um agradinho pra elas.

***



terça-feira, 6 de maio de 2025

com simplicidade, franqueza, acrobacias matutinas e a boa e velha poesia acidental

E chegou. Agora pela segunda vez.
Embalado com tanto carinho quanto foi escrito.

***

“...e o mundo abundava em todo o género de prodígios que supor se possa...”

[...]

“...mas bem te digo que sei lidar com cavalos. Consigo com que eles queiram fazer tudo o que eu quiser que eles façam. Os cavalos compreendem-me.

- Como é que arranjas isso? – perguntei.

- Cá me entendo com cavalos.

- Está bem, mas entendes-te como?

- Com simplicidade e franqueza.”

[...]

“Um homem desconfiado fiava-se nos olhos e não no coração.”

***

“O meu tio Melik deve ter sido o pior lavrador que jamais existiu. Era demasiado imaginativo para que as coisas lhe saíssem bem. O que ele queria era o belo. Queria plantá-lo e vê-lo crescer. Eu próprio plantei para cima de cem romãzeiras. E também guiei um tractor John Deere, tal como o meu tio. Tudo aquilo era arte, não agricultura. Do que meu tio gostava era da ideia de plantar árvores e vê-las crescer.”

[...]

“O meu tio endireitou-se, e suspirou profundamente.

- Põe o animalzinho no chão – disse. – Sejamos bons para com as inocentes criaturas de Deus Todo-Poderoso. Se não é venenoso nem chega a crescer mais do que um rato e se não anda em grupos muito numerosos nem tem memória para falar de tudo isto, deixa a tímida criaturinha voltar à terra. Sejamos bons para com os serzitos que connosco vivem à superfície do globo.

- Sim senhor.

Pousei o sapo no chão.

- Vá, com jeitinho. Que nenhum mal aconteça a este estranho habitante das minhas terras.”

[...]

“- Isso o que é?

- Olhe, é assim uma espécie de ratos. Pertencem à família dos roedores.

- E que faz tudo isso, nas minhas terras?

- Não sabem que esta terra é sua. Vivem aqui desde sempre.”

[...]

“Não trocamos palavra, porque havia imensas coisas para dizer e não havia linguagem que as dissesse.”

***

“Tudo aquilo eram coisas que eu já sabia pouco mais ou menos, mas a que nunca me dera ao trabalho de ligar. A coisa consistia em levantar-me de manhã cedo, e durante cerca de uma hora fazer exercícios de ginástica, que vinham ilustrados. E também de beber muita água, respirar muito ar puro, comer do bom e do melhor, e manter a coisa até se chegar a gigante.

[...]

Entretanto, ia cumprindo as regras prescritas e tornava-me mais forte de dia para dia. Quando digo entretanto, quero dizer que cumpri as regras durante quatro dias. Ao quinto decidi dormir em vez de me levantar e de encher a casa de barulho, para irritação da minha avó.

[...]

Pus então de parte o programa de Mr. Strongfort e voltei ao meu próprio programa, que consistia sensivelmente no seguinte: ter calma e crescer, por forma a tornar-me o homem mais forte das redondezas, sem quaisquer preocupações ou exercícios. Foi o que fiz.

***

“Mostrava-se sempre impaciente com todo género de conversas, excepto com as conversas mais directas e pertinentes. O que ele queria era saber o que não sabia, e nada mais. Não queria conversas pelo gosto de conversar.”

***

“Tudo aquilo era muito bonito, mas com a melancolia de um tom menor.”

***

“Estou convencido que uma pessoa exagera quando não se lembra dos outros.”

***

“...só pela sua acidental poesia e não com mira em lucros mesquinhos.”

***

“Não se pode ter tudo – excepto um dia ou dois de cada vez.”

***

“Os seus olhos eram de criança, mas pareciam recheados de anos de recordações – de anos e anos de separação de coisas profundamente amadas...

[...]

...era uma voz que parecia vir não dele próprio como da sua velha terra.

[...]

...e a sua melancólica cabeça de criança cheia de compreensão e mágoa...

[...]

Nada há como o encanto de um povo, a variedade; a qualidade que os torna humanos e merecedores de se perpetuarem.”

[...]

“- Há pessoas que falam quando têm alguma coisa para dizer – acrescentou a minha mãe -; outras não.

- Mas como pode uma pessoa falar sem dizer nada?

- Fala-se sem palavras. Estamos constantemente a falar sem palavras.

- Para que servem então as palavras?

- Para nada, quase sempre. Na maior parte das vezes, apenas servem para encobrir aquilo que se quer realmente dizer ou que não queremos que se saiba.”

***

Cai então a noite, que é quando o deserto se excede. Quando o deserto e a noite se encontram, dá-se aquilo a que se chama silêncio.

É daquelas coisas que se não esquecem.

Enche-se a memória da quietude e do mistério do mundo.”

***

My name is Aram
(William Saroyan, 1940)


Meu nome é Aram
Composto e impresso por Gris, Impressores. Lisboa, 1972.

domingo, 6 de abril de 2025

ao mar

JUL/23

***

A baleia "à pampa", a tormenta no alto e o casco berrando "creck" por baixo.

***

"Trate-me por Ishmael. Há alguns anos - não importa quantos ao certo -, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que me interessasse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo das águas. É o meu jeito de afastar a melancolia e regular a circulação. Sempre que começo a ficar rabugento; sempre que há um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que, sem querer, me vejo parado diante de agências funerárias, ou acompanhando todos os funerais que encontro; e, em especial, quando minha tristeza é tão profunda que se faz necessário um princípio moral muito forte que me impeça de sair à rua e rigorosamente arrancar os chapéus de todas as pessoas - então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar."

***







Salvador. Março/25

***

"A Bahia tem um jeito..."