quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
sábado, 14 de dezembro de 2024
analgias, tiques e pequenas falhas locomotoras
[...]
“...talvez a falta de um braço protetor sobre os ombros ou em torno da cintura, jardins e crepúsculos expõem nossas carências e fragilidades, o corpo produz analgias, tiques, pequenas falhas locomotoras para denunciar sua solidão.”
[...]
“Já inventariei todos os ruídos da casa, todos os silêncios.”
[...]
“Atenção passageiros para o dia, queiram tomar seus lugares. Entrego a cidade, com seus roubos, estupros e assassinatos, aos seus legítimos donos. Sou o guardião da noite, encerro meu turno. Agora posso dormir.”
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sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
ânsia burra nº 542
“Ler – é só o que tenho feito, essa ânsia burra de buscar a pedra filosofal, a epifania da linguagem, a revelação da escritura, o verbo ardente escandindo a palavra mágica que desvela o mistério. Se não tivesse me fatigado de Deus, poderia pilotar o barco da minha insônia em bem-aventurança até a margem da manhã seguinte. Se não tivesse me fatigado do amor, dos tédios e silêncios que o pontuam, eu poderia embeber meus sentidos no torpor de outro corpo. Se não tivesse me fatigado da ideia de morte, eu me agarraria com fervor à vida que sobrevive ao pequeno morrer de cada dia. A lucidez é o mais cáustico dos venenos. E não há espírito que resista à lenta deterioração do corpo. Um homem de meia-idade, nu e sozinho no bojo da noite, sem uma contrição ou um orgasmo, recusando a introspecção que só conduz a ruínas, é um feto desidratado exposto na mesa de autópsia do mundo. Precisa se agarrar ao útero mais próximo, pegar carona na vida que passa ao lado, fincar seu bico de molusco faminto na plenitude de sua presa. Minha filha é minha presa, Harry é minha presa, alguns amigos sobre os quais lanço meus tentáculos com um misto de afeto e repugnância, sim, sou o torvo, o torpe, o que maneja unhas infectadas, embaralhando palavras e navalhas, escondendo na manga a lâmina enferrujada, o ferrão, a baba pegajosa do pequeno monstro solitário.”
[...]
“Gostaria que alguém me dissesse por que tenho de ser o limítrofe, o quase, o relativamente, o por pouco. Até há algum tempo atribuí minha falta de brilho aos azares da sorte, à cidade, ao país, ao meio, à indolência, ao ser esquivo e esquizo que sou. Hoje percebo nitidamente que me falta é talento, fervor, febre criadora. Aquela centelha a que chamam gênio, capaz de embaralhar as verdades aceitas e propor o novo aos olhos pasmos da realidade. Eis o que me falta: a capacidade de exprimir isso de maneira original, sem o já feito e o já pronto, o vulgar lugar-comum, a inércia da linguagem que transforma o dito numa dublagem do que deveria ser dito. Ah, merda, se eu pudesse rasgar com as unhas a pele das palavras, romper seu invólucro acústico, liberar o feto coaxante que habita em seu bojo, ouvir suas imprecações de cartilagem e muco – um som que fosse a extrusão de membranas malformadas sobrenaturando o mundo...”
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Viver é prejudicial à saúde
Jamil Snege
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Rasgando com a unha a pele das palavras:
Mortal Loucura - Caetano Veloso e José Miguel Wisnik
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
existo - não sou
“A vida é muito estranha. Já gastei a minha cota de mulheres, já amei e desamei, fui amado e desamado, mas de repente um arroubo juvenil brota lá dentro e eu me sinto tolo, núbil e apaixonado. Por nenhuma mulher em particular, mas por qualquer mulher – contanto que me olhe com uns olhos redondos de ternura, me fale com uma voz macia, pergunte se dormi bem, se me alimentei, se senti falta dela. Arroubos. Sou um sujeito totalmente à margem do mercado amoroso ou sexual. Uma carreira profissional estagnada, uma aparência que não é das melhores, o desencanto da idade, a indiferença do mundo. Cultivo hábitos antissociais e saberes inúteis. Sou capaz de discorrer sobre um monte de bobagens, identifico árvores, pássaros, minérios. Cozinho razoavelmente. Consigo discutir durante cinco minutos com especialistas de qualquer área. No minuto seguinte constato que não me especializei em nenhuma delas. Li os clássicos, ouvi os clássicos, cito em mau latim, nada sei de grego. De tanto ouvir sobre viagens internacionais, viajei o mundo todo sem nunca ter ido a parte alguma. E as vezes que fui, acabei não indo: não encontrei o túmulo do herói, o café dos impressionistas, a casa onde morreu Balzac, a nascente do Nilo. Peguei o trem que não devia, o avião antecipado, o hotel do lado oposto, fui ao bar que já havia fechado. A mulher que eu amaria já havia partido, o irmão prometido morreu na guerra da Criméia, o amigo desejado ficou retido em Istambul, um furacão, uma avalanche, uma súbita queda de temperatura, uma mudança do fuso horário, um porre, um mal-estar passageiro, uma diferença de caixa, a falta de um terno novo, o medo de se arriscar, não ouvir um conselho, ouvir um conselho, descartar um par de noves, insistir num casamento, alegar indisposição, simular um orgasmo – e aqui vou eu nesta estrada às três da tarde, como poderia estar numa estrada de Sintra ou do Arizona, eu e minha circunstância imutável: existo – não sou.”
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Viver é prejudicial à saúde
Jamil Snege
(publicado em 1998 pelo autor e republicado em 2020 pela Arte & Letra)
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Arroubos.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2024
Música Salva! (49) - We are what we're waiting for
Kim Deal - Nobody Loves You More
Kim Deal - Big Ben Beat
Nobody Loves You More
(2024)
segunda-feira, 2 de dezembro de 2024
meu truta, é o seguinte...
"...disse em uma voz cheia de areia e intenção..."
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"Falando de evacuações, sua missiva, apesar de completa em outros assuntos, passou por alto nesse. É verdade que você fala em processos de micturição rural, mas muito ligeiramente também. Achei isso uma omissão lamentável da parte de quem, como você, não ignora o meu inesgotável fascínio pela defecação em acampamento. Favor mandar detalhes da próxima vez. Tipo de fossa, posição adotada pelo usuário (agachada ou em pé), número de idas por dia, quantidade de vermes produzida, odor, e número de depósitos por hectares deixados por visitantes anteriores."
Pescar truta na América - Richard Brautigan
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sábado, 23 de novembro de 2024
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
no ar (yee ha)
Sou cercado por uma multidão crescente
que acredita que eu posso voar.
o jornal do bairro publicou um artigo sobre um
homem que realmente tem esse talento invejável
mas botaram a minha fotografia em cima do artigo.
conseguiu uma foto minha,
Diante,
Como estou,
Dessa barulhenta multidão de estranhos.
que eu mostre meus incríveis poderes.
Cedo a eles,
e fico,
batendo meus braços e pulando o mais
E fico com medo, cada vez mais, de que a
multidão, agora desapontada, vá me atacar,
achando que sou um charlatão presunçoso.
Mas, finalmente, eles abrem espaço,
resmungando.
Agradecendo à minha estrela-guia,
eu corro para casa,
muito abalado para continuar as compras.
Naquela noite,
sozinho,
eu tento voar outra vez.
É um exercício fútil, está provado,
mas viciante.
Noite após noite, fico de pé no telhado,
batendo os braços e dando pequenos
saltos sobre as telhas.
Por mais que eu tente,
nunca consigo decolar."
Nação tomada pelo medo
(Thom Yorke & Stanley Donwood)
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Sabe o que o Thom Yorke disse pra inteligência artificial?
"- Not ok, computer."
sábado, 16 de novembro de 2024
século desapaixonado e indeciso
“No último quartel do século XX, numa época em que a civilização ocidental decaía inconfortavelmente rápido demais, porém de forma muito lenta para ser excitante, o mundo em grande parte sentava-se numa poltrona de teatro cada vez mais cara, esperando – em variadas combinações de medo, esperança e tédio – algo importante acontecer.
Alguma coisa séria não demoraria a ocorrer. O inconsciente coletivo inteiro não poderia estar errado quanto a isto. Mas o que seria? E seria apocalíptico ou rejuvenescedor? A cura do câncer ou uma explosão nuclear? Uma alteração atmosférica ou uma mudança do mar? Terremotos na Califórnia, abelhas assassinas em Londres, árabes na Bolsa de Valores, a vida sendo gerada em laboratório, ou um OVNI nos jardins da Casa Branca? Monalisa deixaria crescer um bigode? O valor do dólar cairia?”
[...]
“...é preciso concordar que os últimos 25 anos no século XX foram um período duro para os amantes. Foi uma época em que as mulheres estavam magoadas com os homens, em que eles sentiam-se traídos pelas mulheres, uma época em que os relacionamentos românticos assumiriam o caráter da neve quando cai na primavera, abandonando muitas criancinhas em banquisas inóspitas e pontiagudas.
Ninguém sabia o que fazer com a lua.”
[...]
“Imagine acordar e descobrir a lua caída de cara no chão do banheiro, como o finado Elvis Presley, envenenada com banana split.”
[...]
“- A lua terá alguma finalidade? – ela perguntou ao Príncipe Encantado.
O príncipe Encantado fez de conta que era uma pergunta boba. Talvez fosse. A mesma questão apresentada à Remington SL3 extraiu esta resposta:
Albert Camus escreveu que a única dúvida séria é se você deve suicidar-se ou não.
Tom Robbins escreveu que a única dúvida séria é se o tempo tem um início e um fim.
Camus evidentemente levantou-se de mau humor e Robbins deve ter esquecido de dar corda no despertador.
Existe apenas uma dúvida séria. E é:
Quem sabe como conservar um amor?
Responda-me isto e lhe direi se você deve ou não se matar.
Responda-me isto e o tranquilizarei quanto ao início e o fim do tempo.
Responda-me isto e lhe revelarei para que serve a lua.”
“Quem sabe como evitar que o seu amor vá embora?
1. Diga-lhe que vai até a lojinha de doces na Flatbush Avenue, no Brooklin, pegar um cheesecake e que se ele ficar poderá comer a metade. Ficará.
2. Diga ao seu amor que você quer uma lembrança dele e consiga um anel de seus cabelos. Queime-o num incensário. Desses que se vende em lojas de artigos baratos com símbolos ying/yang dos três lados. Vire para o sudeste. Fale rápido por sobre o cabelo queimando, numa língua convincentemente exótica. Remova as cinzas e com elas pinte um bigode no seu rosto. Procure seu amor. Diga que você é uma outra pessoa. Ele ficará.
3. Acorde o seu amor no meio da noite. Diga que o mundo está pegando fogo. Corra para a janela do quarto e dê uma espiada. Como se não fosse nada, volte para a cama e garanta ao seu amor que está tudo bem. Adormeça. De manhã, seu amor estará lá.”
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Still life with woodpecker
Tom Robbins
(1980)
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quinta-feira, 14 de novembro de 2024
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
Lundy, Fastnet, Irish Sea...
Nada
"Ninguém gosta de nada
Gostaria do fundo do meu coração que não existisse
Mas apenas querer não basta
Vivemos no mundo real, onde nada existe
Não podemos simplesmente desinventá-lo
Nada é incompreensível
Nem você nem eu temos qualquer esperança
de apenas entender o que é e o que faz
É difícil saber se nada é realmente nada
E, portanto, difícil saber se uma política
de fazer nada é bem sucedida
Nada
Por mais eficaz que tenha sido até agora
Dificilmente pode continuar a sê-lo
por tempo indeterminado
Se eu tivesse de escolher
Entre a contínua possibilidade de nada acontecer
E de nada fazer
Eu sem dúvida escolheria o último
Ou o anterior"
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In Limbo - Radiohead
Álbum: Kid A (2000)
I got a message I can't read
Another message I can't read"
ah, nem...
sexta-feira, 1 de novembro de 2024
domingo, 27 de outubro de 2024
outubro em Rosshalde
“...e agora sentia que estava diante de um bom trabalho, incomum, em que não se tratava de apreender as coisas e retratá-las de forma louvável, mas no qual um instante fora do fluxo indiferente e misterioso da natureza irrompera através da superfície vítrea e o fazia sentir o sopro selvagem e gigante da realidade.”
[...]
“O todo era frio e quase cruelmente triste, mas também plácido e incontestável, e sem nenhum outro simbolismo além do mais simples, sem o qual nenhuma obra de arte pode existir, e que nos permite não só perceber a opressiva incompreensibilidade de toda a natureza, mas amá-la com uma espécie de doce deslumbramento.”
[...]
“Havia tempos tinha aprendido que não se pode entender nem explicar as coisas mais belas e interessantes.”
[...]
“Era sobretudo a distância e o silêncio de um mundo em que seus sofrimentos, tristezas, lutas e privações se tornariam alheios, distantes e pálidos, em que sua alma se livraria de uma centena de pequenos fardos diários e ele seria acolhido por uma nova atmosfera, ainda pura, livre da culpa e da dor.”
[...]
“...o aroma melífluo da fruta madura e nutritiva.”
[...]
“Tinha cheiro de terra úmida e da chegada do outono, e ele, que costumava perceber com os sentidos mais aguçados as características das estações do ano, notou com assombro como esse verão lhe havia escapado quase sem deixar rastro, quase imperceptível.”
[...]
“Respirou fundo o ar úmido e amargo do parque, e a cada passo parecia-lhe que estava se afastando do passado como alguém que já alcançou a margem e empurra um barquinho que se tornou inútil. Não havia nenhuma resignação em sua análise e percepção; cheio de obstinação e paixão intrépida, ele esperava ansioso pela nova vida, que não poderia mais ser um tatear e um errar pela penumbra, mas sim um caminho íngreme e ousado para o alto. Mais tarde e talvez com mais amargura do que os homens costumam ter, ele havia se despedido do doce crepúsculo da juventude. Lá estava ele agora, em plena luz do dia, miserável e atrasado; a partir daquele instante, nunca mais pretendia perder um momento precioso.”
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sábado, 17 de agosto de 2024
Sábado
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos,
há a perspectiva de um domingo,
porque hoje é