sábado, 20 de setembro de 2025

balancemos, balençamos: hontem e oje


JUL/2022

***

inicialmente, te emprestei o meu,
depois passei a carregar dois lenços,
um em cada bolso.

quando chorava usava o da direita,
quando você chorava, te oferecia o da esquerda.

não por nada não, viu, mas só
com propósitos puramente sanitários,
considerando com cautela o ambiente hospitalar.

às vezes, usava os dois sem perceber,
às vezes, te oferecia ambos
enxugava nas costas da mão
ou deixava pingar solto nas suas omoplatas.

e houve ocasiões em que choramos aleatoriamente
nestes paninhos
misturando muco e lágrima meus e seus
tanto no da direita, quanto no da esquerda e vice-versa,
sem nenhuma cerimônia.

hoje vi que você ainda usava o lenço de anteontem,
mesmo eu sendo tão cuidadoso em renovar o estoque
com peças limpas a cada nova visita
à UTI humanizada.

te perguntei o motivo, mas, sem esperar resposta,
ofereci de pronto um outro novinho
apenas para descobrir que você
poupava no canto da bolsa os dois lencinhos limpos
de hontem e oje.

e pensar que houve uma noite cega e suja nessa cidade em que alguém se virou sem tato de seda ou microfibra e nos disse:
"- quem ainda carrega lenços nesse mundo?"

(oje, SET/2025)

domingo, 14 de setembro de 2025

soa o gongo



JUL/2022

***

de um lado do ringue
oitenta e dois quilos
de bronquite e tártaro
do outro lado do ringue,
o cruzado de esquerda
mais insosso da cidade

soa o gongo do primeiro assalto
e sigo gastando todo o seu
dinheiro em dívidas
de apostas nas
lutas que não são nada bonitas de se ver

minha dívida eterna de córnea e retina

assisto atento ao município
com a habilidade de escotista
nestes campos de bocejo
em que o menos interessante é sorte

e rabisco os cenários,
os movimentos,
os caracteres
nesse meu caderno de vários erros consecutivos,

os mais dissimulados
erros

e quando falta a criatividade
o que assalta é o algoritmo
ou a perspicácia sincera
do daguerreótipo
imparcial

onde há ínfima novidade ou luz,
volta ligeira no quarteirão
relaxa pupilas e
traz alívio de ar fresco ilusório

testemunho na praça central
que, descida do palanque da razão,
a felicidade agora está descalça no pátio
garantindo sua satisfação
a preços módicos

e nos sons e ruídos incidentais da trilha
de rua: os novos e já tão grandiosos artistas

o jazz desconfia, discorda e de tudo duvida
o blues procrastina suas dores
o choro segura o choro, o samba camba,
a bossa, sova

movimento perpétuo em
máquina de madeira, metal, couro, nylon
carne e fôlego

e, investigando, sigo mais um pouco e ainda a pé,
afinal, um cara,
quando é um rústico, um drástico, um dramático, um trágico, um apocalíptico,
ele anda a pé

seja na chuva sovina daqueles sete anos
seja neste rascante, incendiário e sisífico mês de agosto

colecionando azarões perfeitos
- estrutura e formação -
constituição bem trabalhada
de viver beijando a lona
sem jamais se permitir
jogar a toalha

lutas nada bonitas de se ver

então saquemos dos nossos próprios bolsos
e façamos nossas apostas por conta e risco

a cidade não vai esperar
a reunião do conselho da tesouraria

(2019)

***


Shining (2025)
Mac DeMarco

***

Sim, tudo muito bom, tudo muito bem, muito bonito, muito falsetístico, muito equestre, muito puro.

Mas a questão é que o sol já não brilha sobre ninguém, meu ferinha.
Ele chove.
Nos seus próprios termos, ele chove.
E por isso a chuva parou de ligar.

E eu fiz de tudo pra não me importar com nada disso, mas, pego de surpresa assim, num domingo à noite, depois de mais uma bateria de chopps que não deram em nada, confesso que cometi essa gafe de ficar comovido.

***

E "gonna away now" é uma placa de sinalização que devíamos obedecer com mais frequência mesmo, concordo contigo.

sábado, 13 de setembro de 2025

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Intransponível


JUL/2022

***

Pois então não se acostume com a emoção, porque depois viver sem ela será difícil.

sábado, 6 de setembro de 2025

deus na escuridão - MÃE, valter hugo

 

Deus na escuridão
Valter Hugo Mãe

***

“As barrigas das mães não eram para visitas mordedoras. Predadores dentados não se atreveriam a chegar-lhes perto. As mães são mais que ferros e mais que tubarões, mais que crocodilos e mais que dinamites.”

“Quando nasce uma cria, há um planeta com seu nome onde só sua mãe habita.”

“...sumária e toda.”

“...meu irmão não teria atmosfera, seria ainda vulcânico...”

“Tinha muita higiene com Deus.”

“Ia ser tão limpo e sem culpa que haveria de comparar-se ao valor da paz.”

“Amamos mais o que vemos em perigo. Amamos mais quem vemos em perigo.”

“Meu pai via-se para tão longe que só poderia estar feito de distância.”

“Diz-se que a ilha já inventaria suas flores só pela memória, sem semente nem água.”

“A fome é uma certa morte à espera.”

“De todas as vezes que fazia o que era pedido ou esperado, eu era bonito. Não havia melhor coisa para ser.”

“Tinha uma infância aguda. Sofria de infantilidade drástica, máxima.”

“Eram a matemática dos afectos. E eu disse: as mães. Eu disse: minha mãe vai educar este dinheiro, minha senhora.”

“Quando minha mãe puser as mãos neste dinheiro, vai levá-lo onde adube, onde cubra, onde cure, onde faça justiça. Este dinheiro, minha senhora, vai ser inteligente à força de minha mãe. Vai aprender uma lição de vida. Vai ser como um doutor. E eu ficarei feliz.”

“Assim se educa o dinheiro. Que por vezes se esquiva das mãos que o merecem. Esperneia por pudores, vergonhas e demasiadas etiquetas.”

“Pelo amor, sobretudo, que a santidade não dava aos homens da ilha. Só às mulheres.”

“O mar, essa imensa tristeza de água.”

“...tão feita de tempo e saúde...”

“Éramos pessoas puras em nossas incompletudes e derivas.”

“Quando não se acredita com o coração, é importante acreditar com os braços, com os pulmões ou com o estômago. A vida desafia por todo o lado, e a resistência tem de ir buscar sua ciência a qualquer pulsação, qualquer fluxo, qualquer golfada de ar. Até para amar. Maioria do amor é com os braços. Com a força das pernas, com a cabeça obstinada procurando soluções para proteger.”

“Avelharíamos casmurros como todos os velhos. A ficar de aspecto longínquo, todos antigos, como animais de outras épocas que procuram habitar ainda um planeta que foi embora à revelia.”

“O medo sempre pergunta sobre a culpa, porque a coragem constrói a partir da convicção de se merecer, ou não, vencer o obstáculo.”

“A solidão é sempre uma espécie de fim. O fim de um lugar.”

“A partilha de uma maravilha trazia mais maravilha ainda. E eu sentia-me orgulhoso de ter sabido daquilo primeiro. De ter merecido saber daquilo primeiro.”

“Na direção das minhas pessoas sagradas era, por natureza, o meu caminho.”

“...em redor de suas mães perfeitas, porque é o amor que aperfeiçoa.”

“Seria invisível no radar da fome.”

“A mesa estava posta. A sopa pelos pratos a parecer um jardim desfeito com beleza. Podiam ser nenúfares aquelas plantas de flutuar.”

“Comíamos a sopa e nossa mãe recomendava: só parar até ficar limpo o prato, porque a maravilha que se juntou no prato vai juntar-se inteirinha nas vossas barrigas, e as vossas barrigas vão pensar que são o Paraíso. Quando estávamos alimentados, salvos da fome, ela perguntava: onde fica o Paraíso. E nós dizíamos: aqui. Dentro de nós. Umas vezes no peito, outras vezes mais abaixo. Mas invariavelmente dentro de nós.”

“Eu deveria saber amar tanto que aceitasse a ausência. Se eu fosse maduro, se não fosse néscio, como me acusaram, eu deveria amar sem morrer perante a ausência.”

“Pouquinho ensinara que não se prometem a Deus sofrimentos nem sacrifícios porque, como as mães, Ele não nos quer ver sofrer.
Nunca prometas a Deus o teu sofrimento.
Ajuda Seus filhos a reencontrar o caminho de casa.
Devemos prometer cantar-Lhe, alimentar-Lhe os filhos, salvar-Lhe os animais, regar as plantas, semear pela terra toda, proteger os livros. Caminhar em visita. Ele dizia: quero que prometas, Felicíssimo. Eu quero que tu prometas que O ajudas, mas que não te provocarás a dor. Quem se vicia na dor desumaniza-se.”

“E minha maior obrigação será sempre a de aclamar o coração de minha mãe.”

“...o futuro é uma riqueza universal. Vai esperar a todos.”

“Quem eu era, sem ser muito, haveria de estar todo contido no que fazia.”

“Ainda que minha fuga fosse pela eternidade, uma fuga infinita, sem limite e sem aceitar negociação nem concessão, eu preparava-me para o gasto efêmero do corpo. Essa pressa que ele tem em exalar sua alma, entregar-se à terra, esquecer que nos serviu.”

“Que necessidade tem o corpo em começar a apodrecer, em todos os instantes ensaia sua falência. Ainda que nos sirva, é tão facilmente contra nós. Um inimigo que domesticamos pela metade. O corpo é um suicida. Por mais motivada a alma, por mais que o encantemos, ele progride para desistir.”

“Enquanto reeducávamos os pulmões, nos enchíamos um do outro, como se dentro de cada um voltasse a haver um espaço em que o outro entrava, sem ir embora. Sem jamais ir embora.”

“Quem prefere o amor vive no milagre, e o milagre é em toda parte.”

“...irremediavelmente assim, irremediavelmente juntos.”